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entre lesbos e sapas

flutua Lesbos
em meu corpo:
ilha de onde não vim,
mas que habita minha
língua
com suas tramas
sáficas
amazônikas.

porém os amores que vivo
não são de Europa.
insisto na desGrécia:
(re)escrevendo bocas
tortilleras
sapatonas..

pululam sapas
no meu corpo,
nômades mapas traçados por aquelas que:
amam – lutam – fogem- fodem – organizam orgias – guerrilhas – amizades – se casam – separam – ficam sós – agrupam -se escondem – voltam pra armários – quebram armários – consertam chuveiros – marcham – tocam siririca- violão – guitarra – tocam Gadu, Cássia e Ellen – tacam molotov – dormem de conchinha – amam pra sempre – moram longe – levam caminhão de mudança – terminam – choram ouvindo música ruim – rebuceteiam – tretam – trepam – tremem
fazem
mundo
tremer
e os corpos em volta
tremem:
pululam sapas
neste corpo
que não veio de Lesbos
mas chamam de
lésbica
(e eu
chamo
de sapatão mesmo)

resgate

me percebo
tato
no momento em que meu
olfato

o cheiro
dos teus poemas
percorrendo
eriçar dos mamilos/arrepios de virilha/frio na barriga
rastros,
mapas,
rascunhando
mundos na corpa-corpo
pelos cantos-sereia que ondulam entre ilhas
nunca visitadas

invenção
que é resgate:
lapso
do existir
entre desejo
e colpaso

travelcro

dei duas voltas inteiras no
meu ser
até me dizer: lésbica.
E precisei reconhecer minha distância
frente a essa Grécia tão Européia, 
pra reencontrar-me com
Abya Yala
e me dizer:
sapatão.

num cartaz das ruas
a palavra “travelcro”,
desenhou meu corpo
feito um mapa atravessando o oceano
entre meus prazeres
e os olhares que recebo.

O que levo entre as pernas:
xota ou dildo-de-carne
neca ou perereca?
Já inventei uma vez palavra “pereneca”.
Gosto do sabor que ela deixa nos meus lábios,
da mistura entre mundos
que ela insinua.

Vivo um corpo de fronteira
e os nomes cisgêneros (sempre tão heterossexuais)
não cabem nele.
Sou sapa
profana,
deviada de qualquer palavra que se crê divina.
Onde tuas categorias me classificam
já pulei fora há muito tempo.

a bruxa que roubou teu príncipe

ensinaram-me
que o mundo era dividido
em dois
que
eu estava de um lado
você do outro,
que pra estar contigo
eu precisava ser cada vez mais diferente
de você. Vestir
trajes, crescer barbas, ter gestos firmes, palavras calculadamente racionais
e você
florida, perfumada, delicada, fragilizada, em dependência emocional.

Nos ensinaram a nos gostar
desejar uma a outra
sem que nos enxergássemos
uma na outra
– e a chamar
de amor
esse desencontro entre
nossas almas.

Tentei ser teu príncipe. Quis ser pra ti
todos os romances
que teu coração merecia.
Mas o tempo rasgou aquelas roupas
posto que
nunca couberam
tais calças
em minhas coxas vadias
ou aquele colete
cobrindo meus peitos de puta
nem aquelas luvas
escondendo
minhas mãos de fada.

Hoje não sou teu príncipe
nem mesmo a princesa que desejavas
encontrar dentro de si- me tornei
aquela bruxa
vilã dos teus contos de fada,
espelho daquela mulher
que sempre tivestes medo
de se tornar.

viva

Eu nunca morri por amor.
Chega a ser estranho precisar lembrar
que isso
é uma coisa boa.
Sou abençoada
por ter vivido amores que não me mataram,
que não me esgotaram,
que me deixaram sempre no momento certo:
inteira
o suficiente
pra sempre poder começar
de novo
nos caminhos da minha própria liberdade,
experimentando prazer
no maior amor possível:
amor
por estar
viva.

derramada

o cheiro do gozo que
hoje sem querer mancha a calcinha – não
é o mesmo
de 5 anos atrás.

Será que invento outro nome?
Ou continuo chamando de
“porra”? A viscosidade que
vinda delEs
é branca –
mas que hoje
molha bem transparente
as coxas
da mulher que me tornei.

Entre micromoléculas
farmacológicas,
entre tecnofeitiçarias
que me transformam:
as seivas que hoje correm neste corpo
são outras – os vapores
que fluem desde meu suor
são outros – o sabor de meu tesão
entre as bocas que me desejam
é outro.

A saudade
que meu cheiro, minha pele, meus dedos, meu coração,
deixa nos corações
é outra.

Noutros quartos,
outras roupas, outras desordens, outras manchas,
outras bagunças
outras
intimidades
molhadas
por outras vontades, sonhos, paixões e orgasmos

dessa mulher
que, depois de tantos anos guardada,
hoje
sai de si
derramada
de dentro
pra fora

o que não sei

não sei escrever poesia.
Só que
se eu soubesse
esse poema
nunca teria sido escrito.

Veio sem eu entender como.
Sem eu saber que viria.

sabe o quê?
foi por não saber dançar
que dançamos
aquela dança que nunca mais foi esquecida –
foi por que a gente não sabia amar
que inventamos
aquela história de amor inesperada, a mais bonita.

Estranho ofício
dos sonhos que viram
matéria tocável na realidade da vida.

Sem a gente entender como.
Sem a gente saber
o que vem.

desnascença

Eu não nasci mulher.
Nem você.
Nenhuma
mulher
nasceu-se 
neste nome.
Não basta o corpo,
nem mesmo a profecia dos médicos
– tornar-se mulher
é movimento sem destino
no espaço
entre as marcas do mundo
e
as liberdades
que vibram o peito

que corpo tem paz? como faz
quando um corpo sem paz
precisa dum instante de paz? com que corpo
ela pode ter paz? com que corpo
se ama em paz?

qual o sexo da paz? menino? ou menina?
e se a paz não fosse
macho?
e se fosse
sapa? bicha?
e se a paz for
traveca?

ninguém nunca viu.

corpo em paz é corpo definido. corpo com nome, sobrenome. moral e bons costumes,
corpo em paz é corpo com valores. corpo
que investe na bolsa. joga
futebol. corpo em paz é corpo que vota em fascista
porque o corpo em paz faz guerra
pra que lhe
deixem
em paz.

então
o corpo sem paz: como faz
quando precisa de abrigo sem guerra? como faz
pra plantar
quando lhe expropriam as terras? como faz
pra viver amores sem dor? como faz
quando abuso e violência só
lhe ensina rancor?

ela mesma: corpa sem paz. indefinida, guerra sem lugar, sem nome. 
meninos-mulheres, mulheres-menino,
vadia, viado, viadão, sapatão, safada, mofada, indigesta, suja
trava
louca da pedra. Pedregulho. Entulho.
do tipo que às vezes goza no grelo duro que
lhe fode
por trás.

sangra,
pela buceta. pelo cu. pelas veias
abertas
do continente que é seu próprio corpo.

que sexo
faz a guerra
dos corpos sem paz?
que guerra
faria a paz
dos corpos sem sexo?
que paz
faria o corpo
do sexo sem guerra?

como faz pra ter paz o corpo

que a própria paz não deixa ter paz?